segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cores da saudade

Deitou-se na grama e olhou para o céu como quem olha para nada. Lembrou-se da professora falando sobre a arbitrariedade das palavras, sobre o real significado das coisas e sobre nossa percepção sobre eles.
Riu-se das formigas caminhando sobre seus pés, até uma delas lhe picar. Praguejou um pouco e foi para a aula.
O tema ainda era o mesmo. Melissa enrolava um tufinho de cabelo nos dedos enquanto olhava o céu pela janela, quando foi surpreendida pela pergunta: Você sabe o que é saudade Melissa? Assustou-se com a professora em pé ao seu lado?
-Sei sim senhora, é sentir falta de algo.
-E se você sente falta da comida é saudade?
-Pode ser fome, mas também pode ser saudade, vontade, desejo de grávida, pode ser tanta coisa. E fez cara de pouco caso.
A professora continuou discursando sobre a polissemia das coisas e palavras, enquanto Melissa, novamente com um tufinho de cabelo enrolado no dedo, agora olhava para dentro de si.
Pensava em algo tão importante que nem mesmo o barulho das pessoas saindo da sala de aula interrompeu seu pensamento, até que uma mão quente tocou seu ombro nú e picado de formigas.
- A aula acabou minha querida e a prova é semana que vem, tem que prestar mais atenção na aula.
Melissa sorriu para a professora com um ar de meninice próprio dos apaixonados e saiu correndo desajeitada, se batendo pelas cadeiras.
Pelo caminho olhava as pessoas na rua e sorria para elas, em troca de caras feias e algumas de surpresa.
Chegou em casa e encontrou mais flores, daquelas roubadas em jardins, do jeito que ela gostava e um bilhetinho rabiscado numa notinha de supermercado.
Deitou-se na cama e tentou estudar um pouco, mas o telefone vermelho ao lado da cama parecia tentador. Pegou-o, discou números aparentemente intermináveis e trocou juras de amor no telefone até adormecer com o telefone entre os braços.
Falava com seu namorado, estava definitivamente apaixonada. Mas ele havia viajado pela manhã e ela já anciava sua volta. Foi visitar a mãe doente em Londres e voltaria no fim de semana.
Terça-feira, Melissa levantou sorridente como todos os dias. Desejou bom dia a sua mãezinha que saia as pressas a trabalhar. Fez coraçõeszinhos no prato com pedaços de fruta enquanto enrolava um tufinho de cabelo na mão.
E seguiu a sua rotina juvenil enquanto esperava anciosamente a volta dele.
Sábado,sem aula, sem deveres de casa e o telefone não toca. Em casa de Dona Vera ninguém atende, será que a coitada piorou?
Domingo, dia típico de maresia, sem aula, sem deveres, nada presta na tv. Os amigos de Melissa estavam na praia, mas ela não podia ir. Deveria estar estudando para a prova de terça-feira. À noite, depois de tanto perambular pela casa e quintal, Melissa dormiu, os olhos cansados do vermelho do telefone.
A rua dorme, a cidade dorme, o telefone chama.
- Alô meu bem? a minha mãe piorou, está na UTI, não sei quando volto. Te amo, me espera, preciso desligar, o médico chegou, tu tu tu tu.
Melissa tentou fazer de conta que era um pesadelo, sentiu-se mal. Estava triste. Sua querida amiga Dona Vera estava moribunda, e seu melhor amigo e amante estav triste e sozinho. Sentiu vergonha de querê-lo perto de si enquanto a mãe dele perecia num leito de hospital, mas não conseguia parar de sentir aquele vazio dentro de si.
Andou um pouco pela casa, foi parar na cama da mãe, lá pelas tantas da madrugada e entre braços aconchegantes e um beijo na testa, dormiu enfim.
Não acordou a tempo de ir para a faculdade, passou o dia como passou a noite, perambulando pela casa feito morta.
Nunca havia ficado tanto tempo longe dele, estava tão acustumada aos passeios na praia, as flores roubadas dos canteiros, as noites gostosas em que dormia em seu peito. Sentia falta principalmente de ouvir - está tudo bem Mel, eu tô aqui com você, dorme meu amor. Era o que ouvia sempre que tinha pesadelos.
Sua mãe chegou e a encontrou prostada no sofá, a tv chiava, mal dava para enxergar o que passava. As janelas abertas, o vento entrando sem ser convidado e derrubando meio mundo de coisas. Melissa trajava a sua camisola favorita, e apesar de já estar na hora de dormir, sua mãe teve certeza que aquela roupa, aquela cara e aquele cabelo despenteado, era o mesmo de ontem.
Está tudo bem filha? Melissa balançou a cabeça, abraçou a mãe e foi para o quarto tentou adormecer, mas o barulho que o seu estômago fazia era alto demais. Ficou acordada até que o seu estômago cansou de reclamar, fechou os olhos enfim, mas seu espírito dormia a tempo.
No dia seguinte foi acordada pela mãe, o café estava na mesa, roupa limpa na cadeira e mochila arrumada.
Não queria comer, alegou estar atrasada para a prova. Estranhamente a sua mãe não estava atrasada para o trabalho e resolveu levá-la a faculdade, mas só depois do café.
Tentou comer, mas sua garganta estava estreita, um grão de cereal parecia o monte Everest descendo garganta abaixo, bebeu leite, dois, três, quatro copos e um iorgute para satisfazer a mãe.
Foi calado por todo o caminho, levava fones no ouvido mas não escutava nada. Só queria estar calada. E estranhamente sua mãe percebeu e aceitou, conhecia a filha como ninguém. Sabia o quanto ela amava aquelas pessoas.
Despediu-se da mãe com um beijo, um sorriso forçado e um olhar triste. A prova começaria em meia hora.
Deitou-se na grama para olhar as nuvens, as formigas não pareciam engraçadas agora e nem as sucessivas picadas fizeram Melissa despertam do transe em que se encontrava.
Uma nuvem passava no céu, muito familiar. Lembou-se daquele fim de tarde na praia, os cabelos mergulhados na areia separados apenas por um braço em seu pescoço, o sol brincando de esconder com a lua e a maré indo e voltando, indo e voltando.
- Veja Mel é uma borboleta.
- Onde?
-No céu, uma nuvem muito linda.
E de repente a grama pareceu braço de mãe, virou para o lado. Se encolheu tentando recolher-se dentro de si, talvez como uma borboleta num casulo. Olhou novamente para o céu esperando que ela já tivesse batido asas, mas ela inda estava lá, linda e branca.
Melissa sentiu como se fosse arrebentar a garganta, respirou fundo e antes que percebesse estava soluçando e chorando feito criança.
Lembrou-se de Dona Vera, lembrou-se da mãe que chegou atrasada para cuidar dela, lembrou-se das flores, lembrou-se dos beijos, lembrou-se do colo. Suspirou um nome em voz quase impercepitível. Chorou até quando pôde, sentiu a garganta abrir para deixar o ar passar, posto que seu nariz estava obstruído.
Chorou pensando nele e descobriu enfim o porque não estava bem. Lembrou-se da prova, estava atrasada. Tentou enxugar o rosto na camiseta preta, saiu largando coisas pelo chão.
Entrou na sala de cabeça baixa, a professora ia repreendê-la pelo atraso quando viu seu rosto inchado de choro, perguntou o que houve. Sem esboçar qualquer sentimento respondeu em voz quase muda.
- Aprendi o significado da palavra saudade.
Pegou um papel qualquer na mesa, talvez fosse a prova. Sentou-se num canto da sala. Ouviu a professora falar qualquer coisa, talvez instruções da prova.
Melissa enrolava um tufinho de cabelo na mão enquanto a brisa tentava inutilmente secar as lágrimas do teu rosto.
E uma borboleta ainda a olhava do céu.

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