quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Carta para um tal Lucas


Muitas pessoas, de todos as culturas, lugares e épocas têm a péssima mania de generalizar as coisas e as outras pessoas. Ao que não nos parece interessante temos o maravilhoso dom de nomear inútil, falso ou dissimulado. Ao que não somos capazes de entender, simplesmente nos referimos como coisas desnecessárias.
Sempre fui meio cismada com essas pessoas céticas e generalizadoras, até que um por conta do maravilhoso trânsito da Avenida Águia Real, fui obrigada a ouvir um discurso em praça pública ministrado por um tal Lucas, discurso este ao qual ele intitulou “Minhas meditações ecológicas”. Concordei em parte com o que foi dito, e posto que foi um discurso rápido e que eu ainda estava esperando num banco traseiro de táxi o trânsito andar, fiquei ainda um certo tempo olhando o coreto da praça enquanto as pessoas se dispersavam.
Tentei não ligar para o teor do discurso, afinal devia ser só mais um maluco crendo que suas idéias são verossímeis e universais, mas tenho na pele a inquietude dos novos e como não o conhecia para falar-lhe pessoalmente, decidi escrever-lhe uma carta. Comecei. Caro Lucas, não, caro não, Lucas, afinal não o conheço. Vou começar em outra folha.

Lucas,
Escrevo por dois motivos, o primeiro é para dizer-lhe que admirei a sua coragem de falar em praça pública e a um público considerável a sua opinião, opinião esta sobre os “Admiradores da natureza”, jamais teria coragem de fazer algo assim. O segundo motivo é para dizer que a sua opinião sobre os “Admiradores da natureza” está um pouco equivocada. Se eu não teria coragem de gritar em praça pública, menos ainda teria se eu gritasse sobre tal assunto generalizando-o, englobando a todos. Me admirou o fato de ninguém haver discordado de você ou lhe jogado uma latinha de refrigerante nas fuças. Dado que nem ao menos nos conhecemos deixe-me explicar. Sou uma Amante da natureza, e posso lhe mostrar o quão superficial foi o seu discurso.
Não há para mim nada mais agradável que deitar num leito de rio com os pés na lama fresca da beira, acompanhar cada metamorfose de uma nuvem acinzentada lá no alto, que num eterno namoro com o vento, vai e vem tomando formas indecifráveis. Já se deu conta de que se tirar fotos de uma cachoeira nunca terá uma foto igual à outra ou sequer semelhante? Porque a cada segundo o volume da queda d'água muda, e o modo como a luz do sol atinge a água e as suas gotas e vapor cria um maravilhoso prisma colorido. Uma montanha é só uma montanha, mas sentar-se no alto de uma delas e lembrar o quanto foi divertido chegar até lá em cima é uma coisa indescritível, porque encontra-se muita coisa pelo caminho; pedras exóticas, répteis anti-social, flores que apesar de estar num ambiente por vezes isolados e aparentemente tristes, parecem sorrir e gabar-se da sua coloração perfeita. Ah Lucas, acho que você nunca teve sensibilidade para perceber essas peculiaridades da natureza, é preciso ter olhos, ouvidos e o coração treinados e acima de tudo crer que as coisas mais simples são as mais complexas e maravilhosas possíveis. Concordo plenamente com você, o pôr-do-sol é a coisa mais repetida imaginável, afinal todos os dias o sol nasce e se põe, nasce e se põe, nasce e se põe, mas você já parou o seu mundo para ver um pôr-do-sol? Não, aposto que não, afinal você também é um intelectual e aposto que têm sempre um pensamento, uma leitura ou escrita pendentes. Todos os dias o sol se põe, todos os dias, mas não da mesma forma. Para começar, o pôr-do-sol é normalmente mais brilhante que o nascer do sol, por que os raios avermelhados e alaranjados são mais vibrantes. O que será observado depende também das peculiaridades geográficas do local de onde se observa o fenômeno, e como a luz do sol sofre um desvio ocasionado pela atmosfera, o sol pode ser visto mesmo depois de estar posto, além de parecer maior no horizonte devido à distorção da luz solar criada pela atmosfera. Acontece algo semelhante com a lua. A duração de cada pôr-do-sol varia de acordo com a época do ano. Já ouviu a palavra solstício? Há épocas do ano em que o pôr-do-sol dura mais ou menos e isso varia de hemisfério a hemisfério. É bem verdade que ao ver um pôr-do-sol os poetas e enamorados pensam em amores e poesias, mas são flashes, que somem ao primeiro raio de sol que muda de cor. Caro Lucas, depois de tantas explicações me permito chamar-lhe 'caro', é bem certo que nem todos que param embasbacados em frente a um elemento da natureza percebe suas peculiaridades e tampouco a saboreia de forma descompromissada como eu. Mas há de concordar comigo que boa parte dos “Amantes da natureza” sabem o que fazem.
Espero que entenda ou ao menos respeite o meu ponto de vista.

Atenciosamente, Caroline.
Não o conhecia, tampouco conhecia alguém que o conhecia. Não tinha como lhe entregar a carta. Decidi publicá-la no jornal da cidade intitulado Intelectos & Manchetes, pois tinha quase certeza de que este jornal era lido por todos os intelectuais, artistas, pseudo intelectuais, pseudo artistas e gente rica da cidade, em alguma dessas denominações ele se encaixaria com certeza.
Esperei semanas e não obtive resposta desse tal Lucas, mas como também havia publicado junto à carta meu endereço para contato, recebi algumas cartas de outros “Amantes da natureza” com relatos de aventuras e experiências naturalescas. Uma mais incrível que a outra e de fato eu tinha razão, os que me responderam eram intelectuais, artistas, pseudo intelectuais, pseudo artistas e gente rica da cidade. Oh meu caro Lucas, mais uma vez estás enganado, intelectuais também sabem sorver a essência da natureza e o prazer visual das coisas aparentemente imutáveis.
As cartas cessaram depois de alguns meses e grande foi a minha surpresa ao me ver novamente na mesma situação, estagnada no trânsito caótico da Avenida Águia Real, olhei para fora da janela do táxi e havia uma pequena multidão em volta do coreto. Pensei que poderia ser o tal Lucas, precisava falar com ele, pedir explicações. Não hesitei, paguei e sai do táxi cortando a multidão, subi ao coreto e dei de cara com nada. Pensei que novamente o encontraria ali discursando e falando sobre suas idéias. Mas não havia ninguém ali, só eu, um coreto com eco e uma multidão que agora me olhava como quem espera algo. Gelei. Fiquei pálida. Suei. Não sabia o que fazer. Foi como se as pessoas ao redor que ali estavam antes reunidas ao redor de nada, somente conversando e ocupando espaço, agora me cercassem obstruindo a escada, único lugar por onde eu poderia fugir. Respirei fundo e comecei a falar, falei sobre as minhas meditações ecológicas, mas não as intitulei dessa maneira, não dei título ao discurso, simplesmente falei. Falei sobre o prazer das coisas simples, das coisas pequenas, dos insetos que nos fazem rir com seu comportamento engraçado. Discursei sobre a carta que escrevi a Lucas na verdade, discursei sobre muita coisa, mas discursei principalmente sobre o fazer por prazer, o prazer de não fazer nada e sobre o som das chuvas que às vezes parece canção de ninar. Me calei. E o meu silêncio foi interrompido pelo som de palmas. Eu agradeci e pedi passagem entre as pessoas porque não me agrada essa coisa de tietismo, gosto quando sou ouvida, mas prefiro ficar invisível. Me lembro que após o discurso de Lucas não houve palmas, talvez não tenham concordado com ele, mas não contestaram também. Voltei ao táxi, que continuava no mesmo lugar. Parecia estar me esperando porque assim que eu entrei, o trânsito começou a fluir. Voltei a receber cartas depois desse dia, mas não voltei a respondê-las, Lucas nunca me respondeu, tive vontade de escrevê-lo novamente, não o fiz, mas ensaiei algumas vezes.


Caro Lucas,

Esqueci de dizer-lhe, sou uma intelectual.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cores da saudade

Deitou-se na grama e olhou para o céu como quem olha para nada. Lembrou-se da professora falando sobre a arbitrariedade das palavras, sobre o real significado das coisas e sobre nossa percepção sobre eles.
Riu-se das formigas caminhando sobre seus pés, até uma delas lhe picar. Praguejou um pouco e foi para a aula.
O tema ainda era o mesmo. Melissa enrolava um tufinho de cabelo nos dedos enquanto olhava o céu pela janela, quando foi surpreendida pela pergunta: Você sabe o que é saudade Melissa? Assustou-se com a professora em pé ao seu lado?
-Sei sim senhora, é sentir falta de algo.
-E se você sente falta da comida é saudade?
-Pode ser fome, mas também pode ser saudade, vontade, desejo de grávida, pode ser tanta coisa. E fez cara de pouco caso.
A professora continuou discursando sobre a polissemia das coisas e palavras, enquanto Melissa, novamente com um tufinho de cabelo enrolado no dedo, agora olhava para dentro de si.
Pensava em algo tão importante que nem mesmo o barulho das pessoas saindo da sala de aula interrompeu seu pensamento, até que uma mão quente tocou seu ombro nú e picado de formigas.
- A aula acabou minha querida e a prova é semana que vem, tem que prestar mais atenção na aula.
Melissa sorriu para a professora com um ar de meninice próprio dos apaixonados e saiu correndo desajeitada, se batendo pelas cadeiras.
Pelo caminho olhava as pessoas na rua e sorria para elas, em troca de caras feias e algumas de surpresa.
Chegou em casa e encontrou mais flores, daquelas roubadas em jardins, do jeito que ela gostava e um bilhetinho rabiscado numa notinha de supermercado.
Deitou-se na cama e tentou estudar um pouco, mas o telefone vermelho ao lado da cama parecia tentador. Pegou-o, discou números aparentemente intermináveis e trocou juras de amor no telefone até adormecer com o telefone entre os braços.
Falava com seu namorado, estava definitivamente apaixonada. Mas ele havia viajado pela manhã e ela já anciava sua volta. Foi visitar a mãe doente em Londres e voltaria no fim de semana.
Terça-feira, Melissa levantou sorridente como todos os dias. Desejou bom dia a sua mãezinha que saia as pressas a trabalhar. Fez coraçõeszinhos no prato com pedaços de fruta enquanto enrolava um tufinho de cabelo na mão.
E seguiu a sua rotina juvenil enquanto esperava anciosamente a volta dele.
Sábado,sem aula, sem deveres de casa e o telefone não toca. Em casa de Dona Vera ninguém atende, será que a coitada piorou?
Domingo, dia típico de maresia, sem aula, sem deveres, nada presta na tv. Os amigos de Melissa estavam na praia, mas ela não podia ir. Deveria estar estudando para a prova de terça-feira. À noite, depois de tanto perambular pela casa e quintal, Melissa dormiu, os olhos cansados do vermelho do telefone.
A rua dorme, a cidade dorme, o telefone chama.
- Alô meu bem? a minha mãe piorou, está na UTI, não sei quando volto. Te amo, me espera, preciso desligar, o médico chegou, tu tu tu tu.
Melissa tentou fazer de conta que era um pesadelo, sentiu-se mal. Estava triste. Sua querida amiga Dona Vera estava moribunda, e seu melhor amigo e amante estav triste e sozinho. Sentiu vergonha de querê-lo perto de si enquanto a mãe dele perecia num leito de hospital, mas não conseguia parar de sentir aquele vazio dentro de si.
Andou um pouco pela casa, foi parar na cama da mãe, lá pelas tantas da madrugada e entre braços aconchegantes e um beijo na testa, dormiu enfim.
Não acordou a tempo de ir para a faculdade, passou o dia como passou a noite, perambulando pela casa feito morta.
Nunca havia ficado tanto tempo longe dele, estava tão acustumada aos passeios na praia, as flores roubadas dos canteiros, as noites gostosas em que dormia em seu peito. Sentia falta principalmente de ouvir - está tudo bem Mel, eu tô aqui com você, dorme meu amor. Era o que ouvia sempre que tinha pesadelos.
Sua mãe chegou e a encontrou prostada no sofá, a tv chiava, mal dava para enxergar o que passava. As janelas abertas, o vento entrando sem ser convidado e derrubando meio mundo de coisas. Melissa trajava a sua camisola favorita, e apesar de já estar na hora de dormir, sua mãe teve certeza que aquela roupa, aquela cara e aquele cabelo despenteado, era o mesmo de ontem.
Está tudo bem filha? Melissa balançou a cabeça, abraçou a mãe e foi para o quarto tentou adormecer, mas o barulho que o seu estômago fazia era alto demais. Ficou acordada até que o seu estômago cansou de reclamar, fechou os olhos enfim, mas seu espírito dormia a tempo.
No dia seguinte foi acordada pela mãe, o café estava na mesa, roupa limpa na cadeira e mochila arrumada.
Não queria comer, alegou estar atrasada para a prova. Estranhamente a sua mãe não estava atrasada para o trabalho e resolveu levá-la a faculdade, mas só depois do café.
Tentou comer, mas sua garganta estava estreita, um grão de cereal parecia o monte Everest descendo garganta abaixo, bebeu leite, dois, três, quatro copos e um iorgute para satisfazer a mãe.
Foi calado por todo o caminho, levava fones no ouvido mas não escutava nada. Só queria estar calada. E estranhamente sua mãe percebeu e aceitou, conhecia a filha como ninguém. Sabia o quanto ela amava aquelas pessoas.
Despediu-se da mãe com um beijo, um sorriso forçado e um olhar triste. A prova começaria em meia hora.
Deitou-se na grama para olhar as nuvens, as formigas não pareciam engraçadas agora e nem as sucessivas picadas fizeram Melissa despertam do transe em que se encontrava.
Uma nuvem passava no céu, muito familiar. Lembou-se daquele fim de tarde na praia, os cabelos mergulhados na areia separados apenas por um braço em seu pescoço, o sol brincando de esconder com a lua e a maré indo e voltando, indo e voltando.
- Veja Mel é uma borboleta.
- Onde?
-No céu, uma nuvem muito linda.
E de repente a grama pareceu braço de mãe, virou para o lado. Se encolheu tentando recolher-se dentro de si, talvez como uma borboleta num casulo. Olhou novamente para o céu esperando que ela já tivesse batido asas, mas ela inda estava lá, linda e branca.
Melissa sentiu como se fosse arrebentar a garganta, respirou fundo e antes que percebesse estava soluçando e chorando feito criança.
Lembrou-se de Dona Vera, lembrou-se da mãe que chegou atrasada para cuidar dela, lembrou-se das flores, lembrou-se dos beijos, lembrou-se do colo. Suspirou um nome em voz quase impercepitível. Chorou até quando pôde, sentiu a garganta abrir para deixar o ar passar, posto que seu nariz estava obstruído.
Chorou pensando nele e descobriu enfim o porque não estava bem. Lembrou-se da prova, estava atrasada. Tentou enxugar o rosto na camiseta preta, saiu largando coisas pelo chão.
Entrou na sala de cabeça baixa, a professora ia repreendê-la pelo atraso quando viu seu rosto inchado de choro, perguntou o que houve. Sem esboçar qualquer sentimento respondeu em voz quase muda.
- Aprendi o significado da palavra saudade.
Pegou um papel qualquer na mesa, talvez fosse a prova. Sentou-se num canto da sala. Ouviu a professora falar qualquer coisa, talvez instruções da prova.
Melissa enrolava um tufinho de cabelo na mão enquanto a brisa tentava inutilmente secar as lágrimas do teu rosto.
E uma borboleta ainda a olhava do céu.