sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A dama da praia


Eu ia à praia todas as sextas. Como é certo que o sol nasce todos os dias é certo também que eu estaria lá caso alguém me procurasse.
Me encantava aquele pôr-do-sol, a praia do ouro era como se fosse a minha casa e aquele cantinho em especial, aquelas pedras amontoadas num desenho perfeito, como se fossem esculpidas à mão, era como se fosse o meu quarto.
Apesar de estar lá impreterivelmente todas as sextas-feiras, às vezes também ao sábados e domingos, ninguém me conhecia. Seria estranho se alguém fosse a uma praia onde todos lhe conhecessem, mas se tratando de mim eu esperava que alguém me visse e pensasse, -olha aquela menina que está aqui todas as vezes que venho à praia- e ao menos acenasse pra mim. Me conhecendo como conheço, sei que faria pouco caso e me limitaria a responder com um sorriso amarelo bem ao modo das pessoas tímidas, mas isso não acontecia.
Ademais do maravilhoso pôr-do-sol e do mar limpíssimo e esverdeado, outra coisa que eu não cansava de admirar era uma moça que as vezes aparecia por lá, creio que também ia ver o pôr-do-sol.
Era linda e majestosa, caminhava como uma rainha, às vezes parecia que deslizava na areia, como o vestido cobria o seu pé e não tinha como ter certeza se realmente caminhava, eu gostava de imaginar que ela de fato flutuava sobre a areia e isso a deixava, aos meus olhos, ainda mais bela. Usava um vestido branco, tinha os cabelos longos e encaracolados sempre soltos a brincar com a brisa que passava de quando em quando, mas ela também não acenava para mim.
Depois que o sol sumia no horizonte eu ainda caminhava um longo tempo pela areia, ao passo que a noite chegava sorrateira a praia ia ficando deserta e eu me sentia como o único ser vivo ali, me sentia a dona da praia e isso me fazia bem.
Minha mãe sempre perguntava para onde eu ia todas as sextas depois da aula porque sempre chegava tarde, eu respondia que ficava na biblioteca revisando os assuntos da semana para ela não se preocupar com o fato de eu vagar pela praia deserta noite à dentro. Ela retrucava um pouco, mas com o tempo deixou de me dar broncas, tinha a impressão que tinha se esquecido de mim, assim como a galera da faculdade que deixou de me dar bom dia ou boa tarde. Até mesmo porque eu sempre distraída, quase nunca respondia.
Certo dia ao dormir, sonhei com aquela moça linda lá da praia, acordei sorrindo e decidi que da próxima vez que a visse iria acenar para ela, fazer uma nova amizade quem sabe.
A sexta chegou e eu fui ver o meu rotineiro pôr-do-sol, mas ela não apareceu.
Na segunda-feira de manhã deu no noticiário que teríamos naquela noite a lua mais bonita do ano, eu como apreciadora de todos os fenômenos da natureza decidi que ia fugir a regra e iria ver o crepúsculo e a lua na segunda-feira mesmo, se eu esperasse até a sexta não seria mais lua cheia.
Naquela tarde a praia estava tranquila, tinha um tradicional aroma de cansaço e maresia da segunda-feira. O sol se pôs tão lentamente que eu mal podia acreditar, estava tão radiante que parecia sorrir - que maluquice a minha, o sol não pode sorrir, ele não tem dentes- e após rir da minha própria asneira eu me deixei envolver pelo clima de malemolência e acabei adormecendo ali mesmo na pedra.
Não dormi por muito tempo, acordei pouco tempo depois com uma brisa fina que levantou a barra do meu vestido, me estiquei preguiçosamente, abri os olhos devagar e quando dei pela situação mal pude acreditar que eu adormeci na praia. Fiquei embasbacada quando levantei os olhos e vi aquela maravilha no céu, a lua enorme e brilhante, parecia tão perto da terra. Tinha a impressão que se me esticasse na ponta dos pés daria para tocá-la, mal pudia acreditar. Mirei-a por quase uma hora. Quando meu pescoço enfim começou a doer de tanto olhar para cima, foi como se tivesse vindo de outra realidade, olhei em volta, a praia vazia; só havia eu, a lua e o mar salpicado pelo seu brilho.
Levantei para ir embora e quase morri ao olhar para o lado e ver aquela moça a pouca distância da pedra onde eu estava. Escorreguei com o susto, mas antes de dar com a cabeça na pedra e provavelmente morrer com o coco partido, sua mão suave me segurou pela cintura, me carregou com muita facilidade e me pôs de pé na areia.
Eu estava sem voz, sem ar e só conseguia pensar - será que ela estava ai há muito tempo? Será que ela estava me vigiando? Como ela chegou perto tão rápido? Como ela conseguiu me segurar como a quem segura a uma pluma? E antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ela sorriu pra mim, o sorriso que eu esperava há muito tempo, um sorriso tão lindo e tão brilhante; me desarmou completamente, e todas as perguntas que pipocavam em minha cabeça desapareceram.
- Me desculpa se te assustei, ela disse sem desarmar aquele sorriso.
-Não se preocupe só estava distraída.
- Está muito tarde para uma menina sair sozinha por aí, venha vou te levar até a sua casa.
Caminhamos pela praia sem dizer uma palavra, eu estava meio sem jeito pela cara que fiz ao vê-la, mas ao mesmo tempo estava feliz por não está indo para casa só.
Na porta da minha casa ela me deixou e não disse uma palavra sequer, passou a mão pelo meu cabelo e me deu um beijo na testa, eu agradeci a companhia e entrei correndo em casa, dei boa noite a minha mãe que estava na sala, mas ela não respondeu.
Demorei a dormir, fiquei ainda um tempo olhando a lua cheia pela janela do meu quarto, depois fui para a cama e fiquei pensando em tudo e em todos; adormeci.
O dia seguinte era terça-feira e ainda era lua cheia, mas eu não podia ir à praia de novo minha mãe indagaria demais, por outro lado eu precisava ver aquela moça, falar com ela quiçá saber um pouco sobre ela, não podia esperar até sexta.
Sentei na pedra e fiquei admirando o vai e vem das pessoas, era como se ninguém percebesse uma menina sentada sozinha na pedra com muitos livros ao lado, eu me sentia invisível.
O sol começou a se pôr e eu me esqueci de tudo ao redor, deitei na pedra, mas bastante apreensiva para não cochilar e antes que o sol sumisse no horizonte uma mão quente alisou o meu rosto. Assustada levantei, desajeitada escorreguei na pedra e machuquei o braço, a mão e o joelho.
Me deu vontade de chorar, mas antes que eu pudesse abrir o berreiro, a mesma mão que me assustou me ajudou a levantar.
- Desculpa mais uma vez, tenho a péssima mania de ser silenciosa, juro que não queria assustar você.
Mas desta vez eu fiquei calada, só conseguia olhar para o sangue escorrendo do meu joelho e tentava a todo custo não chorar, não queria parecer boba na frente dela.
Eu me levantei com esforço, ela foi até a beira do mar e com as mãos em concha trouxe um pouco de água salgada para lavar os meus ferimentos, recuei com medo de que doesse, mas como que se ela lesse meus pensamentos falou, - não se preocupe não vai doer. E de fato não doeu logo esqueci que estava machucada, me distraí vendo o sol sumir no horizonte enfim, todos os dias era como se fosse a primeira vez.
- Seus olhos sempre brilham quando você está aqui nessa pedra vendo o pôr-do-sol.
-Como assim sempre? Você só me viu duas vezes.
- Está enganada, te conheço desde que era menina, assim como você, venho aqui nesta praia ver o sol se pôr a muito tempo.
- Eu sempre te vejo passar, mas só te reparei aqui há pouco tempo.
- Eu sei, as pessoas têm o péssimo hábito de não me notar, mas eu já não me importo mais.
- Estranho, uma mulher tão bonita quanto você as pessoas notariam.
- As pessoas são displicentes, sei que você me entende.
- Vou para casa tenho muita lição.
- Vem aqui amanhã?
- Não sei se posso vir com tanta frequência, minha mãe pode proibir, não quero briga com ela, agente mal tem se falado.
Ela desarmou aquele maravilhoso sorriso e pôs na cara um olhar triste, senti naquela moça o mesmo que eu sinto quando não quero ficar só e reorganizei as palavras.
- Vou tentar vir amanhã, você vem aqui todos os dias?
- Sim. Todos os dias venho passear na praia, até mesmo em dias de chuva, seja dia ou noite, basta dar vontade e eu estou aqui.
- Vou indo, até manhã.
- Eu te acompanho.
Caminhamos pela praia falando de muitas coisas, ela tinha muitas histórias para contar, e eu não me cansava de admirar sua beleza.
Voltei no dia seguinte e no seguinte e no seguinte e no seguinte...
Ficamos amigas e o fato de as pessoas não me cumprimentarem na praia já não incomodava mais.
Certo dia fizemos um caminho diferente para ir para minha casa, e ao passarmos pela vitrine de uma loja vi somente o meu reflexo no vidro. Parei atônita, ela seguiu até dar por minha falta ao seu lado.
- Algum problema?
- Não eu, eu, só parei pra ver esse vestido branco na vitrine, entrei e o comprei para disfarçar.
Continuei andando com medo de ter me tornado amiga de uma morta.
Entrei em casa correndo minha mãe dormia no sofá abraçando uma foto da família, acho que ela sente falta da minha irmã que está estudando em outra cidade, balancei-a, sacudi-a e ela não acordou.
Corri pra o meu quarto e pensei em muitas coisas - será que ela morreu? Será que é um fantasma? O que eu vou fazer agora? É a minha única amiga - e cheguei à conclusão que o mais correto era perguntar.
No dia seguinte fui à praia e o céu estava completamente nublado, não dava pra ver o sol. Esperei embaixo de chuva e ela não apareceu, pensei que talvez soubesse que eu sabia sobre ela e então ficou com medo, fui embora.
Não voltei à praia durante toda a semana, mas sentia falta de ter uma amiga para conversar. Finalmente chegou a sexta-feira e então decidi ir à praia, ela estava na pedra me esperando, sentei ao seu lado para ver o pôr-do-sol. E antes que eu perguntasse qualquer coisa, toquei no seu braço para ter certeza de que ela era de carne e osso, ela era. E estava sempre tão quente, não podia estar morta, me enchi de coragem e perguntei, a resposta foi a mais inesperada possível.
- Sempre me mantive longe de todo mundo, sempre fui de poucos amigos, o tempo foi passando e eu encontrava resposta para tudo na natureza, no sol e principalmente nessa praia, me afastei tanto de todo mundo que acabei ficando invisível. Fiquei sozinha durante anos até perceber que você podia me ver, só você. Talvez seja como eu.
Não sabia o que dizer pra ela, porque tampouco tinha compreendido alguma coisa.
Voltei para casa sozinha aquela noite e a minha mãe novamente dormindo no sofá, agora abraçava apenas a minha foto. Chamei-a pelo nome, ela não respondeu. Pensei comigo mesma- ah mãe! Você trabalha demais, anda muito cansada. Dei-lhe um beijo, ela sorriu e deixou a foto cair no chão, a coloquei de volta entre seus braços e me retirei.
Em meu quarto passei a noite pensando no que a moça da praia me disse, e me dei conta que mesmo depois de tantas tardes maravilhosas, brincadeiras e conversas, eu não sabia seu nome.
Pensei também naquelas pessoas da praia que nunca me cumprimentaram, pensei nos colegas da faculdade que não me davam mais bom dia e finalmente pensei na minha mãe, eu saia tão cedo de casa e voltava tão tarde, parecia ter uma eternidade sem falar com ela.
Olhei as minhas mãos e toquei o meu rosto, eu estava viva e quente.
Tirei aquele maravilhoso vestido branco do armário, soltei o cabelo quase tão longo e encaracolado quanto o dela, passei um batom vermelho que apesar de lindo empalideceu todo o meu rosto.
Fui para a praia caminhei madrugada a dentro, a lua novamente cheia enchia de brilho o meu vestido, eu me sentia flutuando na areia.
Passei frente a um “night club” onde sempre rolava festas e havia muitas pessoas na entrada, mas ninguém me notou. Havia uma criança que dormia no ombro do pai, parecia muito cansada, provavelmente brincou na praia por muito tempo, mas ela ainda conseguiu abrir os olhos, virar o rostinho e sorri para mim antes de adormecer completamente.
Voltei para casa tendo quase certeza de que eu também tinha ficado invisível, não encontrei mais a moça da praia, continuei saboreando o pôr-do-sol todas as sextas-feiras como de costume, mas nunca tive coragem de me olhar novamente no espelho.

domingo, 22 de agosto de 2010

A bailarina


Para quem dança a vida é sempre tão doce e leve, há sempre uma música que a leve a qualquer canto do mundo.
A bailarina graciosa e dedicada, dança noite, dias e madrugadas, ela vive para dançar.
Seus pés, delicados e dedicados quando sobem no palco encantam a toda gente e quem a vê linda e sorridente não imagina que a pequena por dentro chora, triste e solitária.
Sua beleza é teimosa, não foi embora junto com seu sorriso e quem antes satisfeita sorria, agora chora sem vontade de dançar.
Quando menina a dança lhe bastava, dançava e pairava ao som dos aplausos, nasceu e cresceu na dança, ao som de Les adieux era a estrela do teatro principal.
A dança sempre lhe inspirou a ver tudo de uma forma mais linda, mais suave e mais particular. Agora algo mudou, a dança perdeu para ela um pouco do seu brilho, a dança entristeceu.
A bailarina decepcionada começou a pensar em novas formas de mostrar ao mundo o seu brilho e o seu talento.
Pôs-se a estudar piano e em breve espaço de tempo aprendeu a tocar as mais doces sonatas que existem.
O teatro principal ficou mais triste sem as suas apresentações, mas a vizinhança no entanto se alegrava com seu canto, sua melodia e sua magia.
A Bailarina ficou conhecida por toda a cidade como a menina dos dedos de anjo, ela tocava por todo o dia, mas quando chegava as 17:45 impreterivelmente tocava sua canção favorita, não era Mozart, nem Chopin tampouco Tchaickovsky, era uma canção simples e pouco conhecida de um amigo da família, pianista de mão cheia, não era conhecido nem famoso, mas compunha deliciosas sonatas e maravilhosas canções.
Quando ela completou sua décima quinta primavera ele lhe presenteou com essa canção chamada “A bailarina solitária”.
Não havia letra mas a melodia era tão linda que emocionava até o mais insensível apreciador de qualquer arte que seja.
Todos os dias por volta das 17:45, quando o sol começava a se esconder ela a tocava em seu piano com uma doçura tão inebriante que toda a rua parava para escutá-la, por toda a extensão do bairro até onde o som alcançava, todos paravam para ouvi-la.
A cada dia que passava ela aprendia uma nova canção e tocava, tocava, tocava.
Até que um dia se deu conta de que enquanto tocava seus pés se mantinham em uma posição Aplomb sempre em ponta, estavam prontos para rodopiar o seu corpo a qualquer sinal positivo.
Neste mesmo dia quando o sol começou a se por, ela tocou a sua canção e a gravou para ouvi-la posteriormente.
Colocou a canção para tocar, seus pés de pronto se alinharam como se ela própria não controlasse o seu corpo, alinhou-o, deu o primeiro giro e dançou, dançou como nunca dançou antes. Deu voltas, piruetas, arriére e avant, rodopiou pela sala inteira, cada canto tinha um pouco do seu perfume. Repetiu a música diversas vezes e dançou até adormecer.
Acordou no dia seguinte um pouco cansada, mas extremamente feliz.
Estava tão linda, seus cachos pareciam mais cacheados e seu sorriso ainda mais lindo. Vestiu sua roupa mais deslumbrante e pôs-se a tocar. Ela ria dos seus próprios pés que não se aquietavam em baixo do piano.
Recebeu um convite para novamente dançar no teatro principal e ficou muito feliz.
Quando subiu ao palco todos levantaram para aplaudi-la, a música começou mas depois do primeiro giro seus pés pareciam pesados demais para rodopiar leve e graciosamente.
Na platéia após o fim do espetáculo todos a aplaudiram de pé. Ela agradeceu, a cortina baixou e ela olhou-se no espelho, viu-se vestida de solidão, fantasiada com um véu de alegria e ornada com um maravilhoso sorriso que o ofício de bailarina lhe exigia.
A música começou a tocar, outra bailarina ia dançar. Ela se deu conta que o problema não era o teatro, nem as pessoas, nem os seus pés. Era a música.
Voltou para casa e tocou como louca, todas as canções que conhecia e seus pés ali prontos para dançar. As vezes tinha a impressão de ouvi-los dizer:
 Vamos levante, rodopie, preciso dançar!
Mas ela sabia que era só impressão. Tocou todas as músicas que conhecia e quando não tinha mais o que tocar repetiu todo o seu repertório e quando novamente o esgotou seus dedos não aguentavam mais, então chorou, chorou até dormir.
Sonhou que dançava num salão muito charmoso, ao som de um piano. Alguém tocava para ela divinamente, como se fora ela própria a tocar e ela se sentia muito feliz.
Ao acordar compreendeu que se sentia só. Nem as suas belas flores, suas canções, seus espectadores e toda aquela adoração que lhe devotavam eram capazes de afastar essa solidão e essa angústia que ela sentia.
Olhou para o seu piano, para as suas sapatilhas e a sua bela roupa de balé estendida sobre a cama e com uma lágrima teimando em rolar face abaixo, se olhou no espelho e pensou:
-Não vou mais enganar ninguém, não posso sorrir enquanto danço se a minha vontade é somente chorar, vou preencher a minha vida de música ainda que não haja ninguém para dançá-la.
Pendurou as suas belas sapatilhas no armário, o trancou e colocou a chave dentro de um vasinho onde plantou uma margarida.
Se dirigiu ao piano e começou com uma linda nota de sol, prosseguiu cantando a “Canção da bailarina solitária”, enquanto toda a avenida parava para lhe ouvir.